domingo, 21 de março de 2021

 Trabalho docente: natureza, especificidades e perspectivas.

Carlos Antonio Fortuna de Carvalho

Licenciado em Pedagogia pela FE/UFG



Resumo

O presente artigo tem a intenção de abordar o termo “trabalho” a partir da perspectiva marxista diante do advento do capitalismo, destacando a relação de exploração estabelecida entre capitalista e trabalhador que se viu obrigado a aceitar a formalização e a fragmentação do trabalho. Abordará a retirada do domínio do trabalhador sobre o processo de produção e sua consequencia, o estranhamento entre o homem e o objeto do seu trabalho. Após esse primeiro momento, iremos refletir sobre a especificidade do trabalho docente e o que o diferencia das demais profissões, tendo em vista a sua natureza formativa. Também vamos destacar que o resultado do trabalho docente não é um produto, mas a autoconstrução do ser humano autônomo e capaz de questionar o modelo de sociedade em que vive. Como conseqüência disso, entra em rota de colisão com os interesses do sistema capitalista em sua face contemporânea, o neoliberalismo, que dentre outras, tem como meta reduzir a escola a um lugar de alienação ideológica e preparação de mão de obra para o mercado de trabalho. A partir desse contexto de disputa, dissertaremos sobre quais as perspectivas da docência para a superação dos desafios a ela colocados.

Palavras-chave: Docência. Desafios. Formação. Trabalho.


Introdução

O que é o trabalho? Como esse conceito de atividade humana surgiu? Estas são perguntas provocadoras que marcam o início da nossa análise sobre o trabalho, enquanto atividade humana, especificamente o trabalho docente, dentro do sistema capitalista.

Fontana (2008, p.165) diz que: “[...] o trabalho, numa forma social genérica, pode ser compreendido como a utilização da força de trabalho, na relação com a natureza, para a produção de valores de uso necessários à vida humana [...]”. Sobre o trabalho docente, Alves (2020) diz que é todo trabalho de ensinar de forma intencional e sistematizada. O objetivo deste texto é a reflexão sobre a relação entre o trabalho no sistema capitalista e trabalho docente, suas convergências e divergências, a natureza do trabalho docente e a formação dos professores.

O que diferencia a atividade humana da atividade dos demais animais? Exatamente a intencionalidade, ou seja, é uma atividade que busca não somente a sobrevivência, mas busca um objetivo e por isso se desenvolve a partir das experiências. A atividade dos outros animais é meramente a busca da subsistência e não tem evolução, a forma como exerce a sua atividade não muda com o tempo. Sobre isso, Vítor Paro afirma,

Quando consideramos uma espécie animal, por exemplo, no período de cem anos, constatamos não ter havido mudança. O animal é o mesmo no decorrer do tempo porque está preso a sua necessidade (ou “necessariedade”) natural. Com o homem a coisa é diferente, o homem é substancialmente diferente, substancialmente outro em relação ao homem de cem anos atrás. (PARO, 2000, p.29).

A partir da perspectiva do materialismo histórico-dialético marxista, no processo de trabalho existem três elementos: o objeto, instrumentos de trabalho e a atividade orientada (força de trabalho). O homem possuía o pleno domínio desses três elementos e estabelecia relações com a natureza e com os outros homens, alcançando como resultado o objeto desejado. Havia portando uma ligação, uma identificação entre o homem e o objeto resultante da sua intervenção.

O advento do capitalismo colocou fim ao trabalho humano em sua integralidade. Segundo Paro (2000), o domínio sobre os meios de produção foi expropriado, o capitalista passou a dominar os meios de produção e o trabalho foi fragmentado, retirando do homem o domínio sobre o processo de produção. A partir de então ocorreu uma submissão formal, restando a homem apenas a possibilidade da venda da sua força de trabalho.

Como ação essencial desse modo de produção, o capitalista, a partir do seu domínio dos meios de produção, passou a obter pelo produto um valor maior do que era pago ao trabalhador, essa diferença de valores é conceituada na perspectiva marxista como “mais-valia”. Vejamos como exemplo:

O algodão chegava à porta da fábrica na forma de um fardo e saía como peças de roupa que podiam ser vendidas a um preço mais alto. Dessa maneira, o trabalhador na fábrica adicionava valor às mercadorias. Mas não lhe pagavam o valor total que acrescentara. Em verdade pagavam-lhe um salário de subsistência, ou pouco mais; o dono da fábrica embolsava esse valor excedente, a mais-valia, como lucro. (STRATHERN, 2006, p.19).

        Quais elementos permitiram esse nível de exploração? Recorrendo mais uma vez ao pensamento marxista, identificamos a existência de uma série de elementos que sustentam o conceito de que a vida social é um reflexo da vida econômica. Em outras palavras, as relações sociais, ideológicas e intelectuais são determinadas pelas relações econômicas (STRATHERN, 2006). Esse arcabouço social mantenedor do status quo é bem representado pela metáfora do edifício,


A sua base ou infraestrutura seria o conjunto das relações de produção, ou seja, as relações de classes estabelecidas em determinada sociedade. Sobre esta estrutura econômica se ergueria a superestrutura, que corresponde às formas de consciência social em geral, como a política, a filosofia, a cultura, as ciências, as religiões, as artes, etc. A superestrutura compreende também os modos de pensar, as visões de mundo e demais componentes ideológicos de uma classe. A ideologia é chamada de superestrutura ideológica e o Estado é chamado de superestrutura legal ou política, incluindo aí a polícia, o exército, as leis, os tribunais e a burocracia (GUERRA, s.d).


Trabalho Docente

Trazendo essa reflexão para a educação e a realidade dos professores, recorremos às reflexões de Mariano Férnandez Enguita (1991) que dissertou sobre como a docência é desafiada em sua afirmação enquanto atividade profissional autônoma, tal como as atividades dos médicos, advogados e arquitetos, sendo condição essencial para não render-se à proletarização. Sobre isso,

É possível constatar que a proletarização é percebida como um processo inerente à desqualificação e precarização do trabalho docente, em decorrência das mudanças ocorridas na sociedade capitalista e, como conseqüência, no processo de trabalho do professor. (FONTANA, 2008, p.164)

Para Enguita (1991), é preciso destacar a existência de uma ambivalência entre os dois extremos. De um lado há um aumento no número de instituições privadas na educação, trazendo como característica principal nas suas relações trabalhistas a exploração do trabalhador e no setor público a persistente tendência ao corte de gastos. Por outro lado, a própria natureza do trabalho docente afirma a sua autonomia e resiste em adequar-se a padrões e mais ainda, a impossibilidade de sua substituição por máquinas. Assim, conclui que a profissão docente transita nos dois cenários.

A partir desse contexto, o trabalho docente assume importância fundamental, até mesmo para a sua afirmação enquanto profissão autônoma. Com isso, a escola tornar-se-á lugar de construção de conhecimento e de questionamento da realidade social, contrariando a tendência retrógrada de ser um lugar de formação de indivíduos dóceis ao status quo.

Para melhor entendermos a especificidade do trabalho docente, é necessário saber que o seu resultado é imaterial, ou seja, não é tangível. Paro (2000) nos diz que no trabalho pedagógico, o aluno é ao mesmo tempo “objeto e sujeito”, sendo capaz de capaz de resistir, agir e interagir durante o processo. Desta forma, diferencia-se do modo de produção capitalista no qual o objeto é passivo às transformações a ele impostas. O produto resultante do trabalho pedagógico não é a aula em si, mas a forma como o aluno entra e a forma como ele sai da escola, confirmando a tese de que o conhecimento é progressivo e transforma no educando a percepção sobre a realidade.

Neste sentido, o papel do professor é fundamental, pois a sua atitude enquanto educador é o que fará diferença na formação de seus alunos. O saber científico por si só não diz o que é o professor – há um saber invisível proporcionado pela experiência docente – que é utilizado em sala de aula, que transcende a mera repetição do mesmo (ALVES, 2018). A sensibilidade para sentir o momento certo para intervenções agregadoras de conhecimento só é desenvolvida através da experiência proporcionada pelo tempo.

Formação de Professores

Esse contexto nos direciona para uma reflexão sobre um aspecto fundamental no que diz respeito à construção de uma docência independente, ética e comprometida com a educação: a formação inicial e contínua de professores como forma de construção de sua identidade. Galúcio (2014) destaca esse fator como crucial para que o professor entenda as especificidades inerentes à prática pedagógica e contribua na construção da educação, principalmente na contemporaneidade em que conhecimento e informação são diferenciais determinantes para a ocupação dos espaços sociais, sendo a escola desafiada a buscar novas formas de ensinar.

Existe uma cobrança para que as instituições formativas aprimorem-se no sentido de tornar a prática cotidiana dos professores mais eficaz. Entretanto, há que se buscar o equilíbrio na aquisição de técnicas pedagógicas sem perder de vista conteúdos essenciais para o processo formativo. Ou seja, existe o risco de tornar o cotidiano pedagógico apenas instrumental,

A respeito dessa capacitação, pesquisas indicam a existência de um descompasso entre a proposta de criação dos cursos de capacitação e o seu real desenvolvimento. A capacitação transforma apenas as técnicas, mas não alcança os saberes docentes. (GALÚCIO, 2014, p.25)

Diante disso, é necessária a interação constante entre a academia e as escolas e também os currículos sejam repensados. E que os conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade se aproximem do cotidiano docente, principalmente nas escolas públicas que, além da diversidade do seu alunado e os diversos desafios colocados por essa realidade, enfrentam também a escassez de recursos materiais e humanos, causados pela incompetência do Estado e principalmente pelo projeto de desmonte da educação pública no Brasil. A docência precisa resistir à tendência de só aplicar técnicas de ensino, esse é o desejo do capitalismo, diante disso,

Nesse aspecto, um dos desafios é despertar um motivo central de mudança da prática docente, fomentando o processo educativo como parte significativa de sua profissão, sendo que ele precisa sim instrumentalizar-se, mas também contribuir para a formação social, transcendendo o mérito técnico e garantindo a apropriação do saber como forma de capacidade e autonomia social. (GALÚCIO, 2014, p.26)

Esse equilíbrio vai proporcionar a construção da identidade docente, contemplando as singularidades e subjetividades presentes na sua prática, permeada de desafios, ambigüidades e tensões nas relações dialéticas entre professor/aluno, professor/pais, professor/coletivo, professor/sociedade.

Considerações Finais

Nos últimos anos, os professores têm sido responsabilizados pelo fracasso escolar dos seus alunos – principalmente pela prática estatal influenciada por forças neoliberais e por grupos religiosos fundamentalistas – essa ideologia e esse discurso são largamente difundidos pelas mídias. Obviamente, para alcançar os seus objetivos, buscam exercer o controle do trabalho docente que, devido à sua natureza, não torna possível o total êxito de tal intento. Sabendo disso, as instituições formadoras são desafiadas a abrir caminhos para que saberes e valores essenciais sejam incorporados à prática pedagógica dos futuros professores.

Vivemos uma realidade intensamente desafiadora, marcada pela implantação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) caracterizada pela sua ideologia do mercado, pelo corte de gastos advindo da Emenda Constitucional nº95. A docência mais uma vez é desafiada a superar as dificuldades impostas. Além disso, a ascensão do discurso superficial, fundamentalista e extremista coloca os professores na condição de doutrinadores para uma suposta ideologia comunista e destruidores dos valores da família cristã ocidental. A educação enquanto área estratégica dentro do corpo social constitui-se em campo de luta. A partir desta percepção, é necessária a demarcação de limites para as ingerências estatais e de grupos fundamentalistas e o estabelecimento de metas para o desenvolvimento do trabalho docente, visando a construção de uma sociedade justa e plural.


Referências

ALVES, Wanderson F. A invisibilidade do trabalho real: o trabalho docente e as contribuições da ergonomia da atividade. Revista Brasileira de Educação, v. 23, Epub 3 dez.2018.

FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano F. A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Teoria e Educação, n.4, “Dossiê: interpretando o trabalho docente”, p. 41-61, Porto Alegre, 1991.

FONTANA, Klalter B. Tumolo, Paulo Sergio. Trabalho docente e capitalismo: um estudo crítico da produção acadêmica da década de 1990. Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 102, p. 159-180, jan./abr. 2008. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>.

GALÚCIO, Euricléia R. O que dizem os autores sobre formação docente no Estado do Pará. 2014. 111 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Instituto de Ciências da Educação. Universidade Federal do Pará, Belém.

GUERRA, Luiz A. Superestrutura e Infraestrutura. [s.d.]. Disponível em: < https://www.infoescola.com/sociologia/superestrutura-e-infraestrutura>. Acesso em: 09 jan.2021.

PARO, Vitor. A natureza do trabalho pedagógico. In: PARO, Vitor. Gestão democrática da escola pública. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2000.

STRATHERN, Paul. Marx em 90 minutos. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.



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