domingo, 28 de março de 2021

 

DESIGUALDADE SOCIAL E EDUCAÇÃO

 

Carlos Antonio Fortuna de Carvalho

 Licenciado em Pedagogia FE/UFG


            Ao analisarmos a desigualdade social e suas relações com a educação devemos como primícia entender que a escola é campo de disputa ideológica no contexto de uma sociedade classista. Nesse locus são “forjados” na perspectiva tradicional/doutrinadora ou “construídos” na perspectiva renovadora/progressista/liberal, os ideais, valores e visão de mundo que certamente vão influenciar nas escolhas e atitudes dos educandos ao longo de suas vidas.

A mera doutrinação para o mercado proporcionada pela escola tradicional perpetua a desigualdade quando propõe um modelo social hierarquizado, que divide a população em classes, onde uma minoria é detentora das riquezas e a maioria é servil e empobrecida. Já a perspectiva progressista de educação tem como característica a formação de sujeitos autônomos e capazes de enxergar a sociedade e as suas disparidades, contribuindo nas mudanças necessárias para a construção da justiça social.

A realidade social é marcada por situações de vão desde a dificuldade da população menos favorecida no acesso a serviços básicos como saúde, educação, saneamento, transporte público e habitação, até a baixa remuneração dos trabalhadores. Esse conjunto de situações compromete a qualidade de vida da grande maioria da população, principalmente em países caracterizados como de “terceiro mundo”, o que não é o caso do Brasil, onde embora haja muita desigualdade social, dado o nível de desenvolvimento industrial, exportação, comércio e serviços, ascendeu à categoria de país “emergente”. Entretanto, nos últimos dois anos a economia brasileira tem encolhido, caindo da 9ª posição em 2019 para a 12ª posição em 2020 como resultado de uma política econômica desastrosa e extremamente neoliberal do atual governo. Apesar do PIB (Produto Interno Bruto) não ser sinônimo de distribuição justa das riquezas de um país, ainda assim uma contração econômica acentua os níveis de probreza da população.

            Fazendo uma breve cronologia histórica, vimos que o conceito de justiça social começou a ser fomentado a partir do rompimento com a sociedade feudal no século XIV, com a da migração da população do campo para as cidades, do desenvolvimento do comércio e o surgimento e ascenção econômica da burguesia. Mas o Estado ainda era absolutista sob a égide de um rei. Posteriormente, sob inspiração das ideias do Iluminismo, também ocorreu o fim do Estado Absolutista, tendo como principal marco a Revolução Francesa, que tinha como ideais “liberdade, igualdade e fraternidade”. Esses ideais foram sendo distorcidos a partir do desenvolvimento do capitalismo, principalmente após o advento da Revolução Industrial no século XVIII, período caracterizado por grandes transformações no processo produtivo, com novas tecnologias e novas relações de trabalho. O trabalhador não era mais um especialista que dominava todo o processo de produção manual. Com o uso das máquinas,  as atividades tornaram-se mais simples e mão de obra facilmente substituível. Com isso, os salários despencaram, as condições de trabalho pioraram e as jornadas eram extenuantes. Esse modelo econômico capitalista, mesmo diante de muitas lutas dos trabalhadores é o que prevalece até hoje. Mesmo tendo sofrido mutações na sua dinâmica de funcionamento, a essência da exploração da mais-valia permanece.

O que caracteriza a desigualdade social é a distinção econômica entre pessoas dentro de uma sociedade (Bezerra, 2020) onde o valor do indivíduo é medido a partir da sua capacidade econômica, ou seja, capacidade de consumir produtos e serviços e de acumular patrimônio. Isso fomenta um senso de competição que não raro sobrepõe o da coletividade. No Brasil de origens coloniais e escravizadoras a disparidade entre as classes sociais é potencializada de tal forma que dificilmente uma pessoa de origem menos favorecida terá oportunidade de almejar os melhores empregos, boa remuneração e qualidade de vida.

            A lógica da acumulação e da competição vai beneficiar principalmente a elite econômica, que é detentora do grande capital. Esses grandes capitalistas têm grande interesse na manutenção de um sistema econômico baseado na exploração da mão de obra dos trabalhadores, flagrante na baixa remuneração, perda de direitos trabalhistas e garantida pela reserva de mão de obra proporcionada pela massa desempregada. Outro aspecto é a deteriorização do papel do Estado enquanto garantidor do bem estar social. Esse contexto desigual resulta em graves situações que atingem a grande maioria da população, que é colocada à margem da sociedade, tornando-se cada vez mais vulnerável às mazelas da insegurança alimentar, favelização, violência (inclusive do Estado) e a criminalidade.

            A partir dessa realidade, a educação configura-se como campo de embate de interesses. De um lado estão os que pretendem a manutenção do status quo e defendem uma escola que funciona como aparelho doutrinador para o mercado, e de outro, os que almejam a construção de uma sociedade mais justa socialmente. Miranda (2020) destaca a necessidade de rompimento com as práticas escolares reforçadoras da pobreza e reprodutoras da desigualdade. A situação de pobreza não pode ser vista como uma característica individual, mas como projeto socialmente constituído (LIMA; MORAES; TEIXEIRA, 2020).

            A estrutura escolar, grosso modo, está impregnada de valores doutrinadores que visam a manutenção das desigualdades, perceptível quando

 

O contexto escolar espelha circunstâncias de pobreza e exclusão, não alheias aos fatores internos a esse ambiente, mas que podem também serem intensificadas, por exemplo, pela organização do cotidiano escolar, pela adoção de um currículo que fortalece atividades conteudistas, restritas e terminam por formalizar o ambiente escolar como um local de segregação e não de inclusão (FARIA, 2020, p.148-149).


            Se a perspectiva sobre a educação é o acomodamento diante do status quo, cada vez mais a miséria será acentuada para muitos e uma pequena minoria será detentora das riquezas produzidas a partir da atividade econômica. É preciso desnaturalizar a pobreza, o Estado não pode se ausentar da responsabilidade de ser agente de transformação social na busca da justiça social.

Romper com esse projeto significa a elaboração e/ou aperfeiçoamento das políticas educacionais, do currículo e das práticas no âmbito da escola e da docência que visem a transformação do papel social da escola, configurando-a como espaço de emancipação dos sujeitos e dessa forma contrapor-se ao prognóstico da intensificação das desigualdades sociais, dentro de uma sociedade marcada por uma política econômica neoliberal. Desafios como a evasão escolar, analfabetismo funcional, estrutura ruim, baixa remuneração dos professores e demais trabalhadores da educação, estão postos e devem ser superados pela mobilização visando uma revolução educacional. A educação é o caminho.


REFERÊNCIAS

Acompanhamento e avaliação do curso de Aperfeiçoamento Educação, Pobreza e Desigualdade Social Ofertado em Goiás. In: LIMA, Daniela; MORAES, Karine; RIBEIRO, Rosselini. Desigualdade social e pobreza: múltiplas faces frente à educação. Goiânia: Cegraf UFG, 2020.

ALVARENGA, Darlan. Brasil sai de lista das 10 maiores economias do mundo e cai para a 12ª posição, aponta ranking. G1 – O portal da notícias da Globo, 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/03/brasil-sai-de-lista-das-10-maiores-economias-do-mundo-e-cai-para-a-12a-posicao-aponta-ranking.ghtml>. Acesso em: 27 de março de 2021.

BEZERRA, Juliana. Desigualdade Social. Toda Matéria, 2020. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/desigualdade-social/>. Acesso em: 14 de março de 2021.

Educação, pobreza e desigualdade social. In: MIRANDA, Marília. Desigualdade social e pobreza: múltiplas faces frente à educação. Goiânia: Cegraf UFG, 2020.

NEVES, Daniel; SOUSA, Rafaela. Revolução Industrial. Brasil Escola, 2021. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/revolucao-industrial.htm>. Acesso em: 27 de março de 2021.

Perfil dos Cursistas do Curso de Aperfeiçoamento Educação, Pobreza e Desigualdade Social ofertado em Goiás. In: LIMA, Daniela; MORAES, Karine; TEIXEIRA, Ricardo. Desigualdade social e pobreza: múltiplas faces frente à educação. Goiânia: Cegraf UFG, 2020.

PISSURNO, Fernana P. Ideais da Revolução Francesa. InfoEscola: Navegando e Aprendendo, 2021. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia/ideais-da-revolucao-francesa/>. Acesso em: 27 de março de 2021.

Pobreza e Escola: Discurso e Silenciamento no Contexto Educacional. In: FARIA, Edna. Desigualdade social e pobreza: múltiplas faces frente à educação. Goiânia: Cegraf UFG, 2020.

domingo, 21 de março de 2021

 ESPECIFICIDADES DO TRABALHO DOCENTE EM RELAÇÃO AO TRABALHO CAPITALISTA

Carlos Antonio Fortuna de Carvalho

Licenciado em Pedagogia pela FE/UFG


Em primeiro lugar é preciso discorrer sobre a natureza, conceito e historicidade do trabalho. Vítor Henrique Paro (1993) a partir de uma análise marxista supõe que o trabalho é uma atividade humana adequada a um fim, que diferencia o homem e a mulher na natureza, ou seja, a capacidade de estabelecer racionalmente um objetivo para a sua intervenção na natureza é o que caracteriza o ser humano e o faz interagir com outros seres humanos e evoluir. As espécies de animais que compõem a natureza realizam atividades ao longo de suas vidas, entretanto não evoluem.

O homem e a mulher possuíam o domínio de todo o processo de trabalho de tal forma que se identificavam o resultado final, o “produto”. Entretanto, principalmente a partir do declínio do feudalismo e o advento do Estado Moderno e capitalista, o domínio sobre os meios de produção foi expropriado. Esses meios de produção agora estavam sobre o domínio do capitalista e o processo foi fragmentado. Homens e mulheres já não dominavam o processo produtivo, e nem se identificavam com o seu resultado, ou seja, o produto (objeto). Restou-lhes somente a venda da sua força de trabalho de forma explorada. E mais ainda,

O processo de produção capitalista só se sustenta, pois, a partir da exploração do trabalho alheio. Da mesma forma, para que o capitalismo se perpetue, é necessário que as relações sociais que se dão no nível da produção sejam relações de exploração dos proprietários dos meios de produção sobre os dispõem apenas da própria força de trabalho (PARO, 1996, p.44).

Diante da necessidade de otimização do processo produtivo capitalista, foi necessário o desenvolvimento de uma estrutura organizacional que propiciasse uma racionalização do processo capaz de garantir a gerência, controle e fragmentação da produção, com o objetivo de garantir a produtividade, o lucro, a mais-valia (fruto da exploração do trabalhador) e conseqüentemente, a acumulação do capital. A esse conjunto de procedimentos aqui mostrado de forma bem resumida dá-se o nome de Administração Capitalista.

Não de hoje, por razões de manutenção do status quo, têm-se tentado a implantação do modelo de Administração Capitalista nas escolas, principalmente na rede pública. A análise a ser feita é como isso pode ser feito, tendo em vista que na nesse modelo, o foco é no produto (objeto). E qual é o objeto da escola? Qual produto a escola gera? Assim como o produto é a razão da existência do modo de produção capitalista, o aluno é a razão da existência da escola. Pensado assim, o aluno é o produto da escola? Tem algum sentido a objetivar o aluno? Certamente não! O que a escola proporciona é o conhecimento e o sujeito desse conhecimento é o aluno, nesse sentido torna-se ao mesmo tempo sujeito e objeto enquanto destinatário a ser transformado pelo processo de construção do saber.

Diante disso, a reflexão se volta para o objetivo do conhecimento proporcionado pela escola. Se for um conhecimento voltado para a simplória formação da mão de obra que irá suprir a necessidade do sistema capitalista, ou uma formação integral voltada para a construção da autonomia e devido a isso certamente vai questionar esse modelo de economia e sociedade de exploração. Esse debate sobre o modelo e o papel social da escola passa principalmente sobre como ela deve ser administrada, com uma estrutura vertical e hierárquica ou como espaço democrático de gestão. Sobre isso, o educador Anísio Teixeira discorreu sobre quem deve administrar a escola,

Jamais, pois, a administração escolar poderá ser equiparada ao administrador de empresa, à figura hoje famosa do manager (gerente) ou do organization-man, que a industrialização produziu na sua tarefa de máquino-fatura de produtos materiais. Embora alguma coisa possa ser aprendida pelo administrador escolar de toda a complexa ciência do administrador de empresa de bens materiais de consumo, o espírito de uma e outra administração são de certo modo até opostos. Em educação, o alvo supremo é o educando a que tudo mais está subordinado; na empresa, o alvo supremo é o produto material, a que tudo mais está subordinado. Nesta, a humanização do trabalho é a correção do processo de trabalho, na educação o processo é absolutamente humano e a correção um certo esforço relativo pela aceitação de condições organizatórias e coletivas inevitáveis. São, assim, as duas administrações polarmente opostas (TEIXEIRA, 1968, p.15).

Administração Escolar enquanto estrutura legal, organizacional e administrativa tem  de um lado o governo  com uma filosofia sobre como deve ser a escola, e de outro a execução do trabalho docente em si. Nem sempre o que é desejado por um ou por outro é possível de execução. Por esse motivo é que a escola, principalmente a escola pública, configura-se como lugar de disputa ideológica. De um lado, estruturada e forte, uma linha que visa a perpetuação do sistema de exploração e acumulação de capital, de outro, com grandes dificuldades, a que defende uma abordagem crítica e autônoma.

A disputa é ampliada para além do chão da escola e atinge também sobre a sociedade e como esta pensa ser o objetivo da escola. Está enraizado na população um modelo de educação meritocrática, marcado pela obrigação da conquista de notas como método de aferição do conhecimento. Para Tragtenberg (2018), também há contradições dos pais e da população em geral em relação ao papel do professor e da própria escola. O professor, ao mesmo tempo em que seu trabalho não é valorizado, é reconhecido como dono do saber. E também é cobrada dele uma postura autoritária que enquadre e condicione os alunos, preparando-os para a vida adulta de servidão ao sistema capitalista. Da escola, cobra-se um modelo de ensino com vistas à memorização e medição da eficácia, desviando-se do seu objetivo principal, que é a formação geradora de autonomia.

Isso ocorre porque existe uma estrutura capitalista para esse fim que mobiliza governos, grandes empresas, grande mídia, associações e entidades do terceiro setor que, agindo através de ações de suposta responsabilidade social, têm como objetivo final a implantação de um modelo educacional alienante.

Esse é o modelo de escola desejado pela estrutura capitalista, uma escola controladora de conteúdos e comportamentos, geradora de força de trabalho inerte diante das injustiças sociais. Entretanto, enquanto como campo de disputa, a escola sempre terá como especificidade a capacidade de formar sujeitos críticos e autônomos, capazes de lutar pela construção de uma de uma sociedade mais justa.


REFERÊNCIAS

PARO, Vitor Henrique. A natureza do trabalho pedagógico. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 103-109, jan./jun. 1993.

PARO, Vitor H. Administração Escolar: introdução crítica. – 7ª ed.- São Paulo: Cortez, 1996 (A Administração Capitalista - p.35-79).

TEIXEIRA, Anísio Spinola. Natureza e função da Administração Escolar. In: Administração Escolar: Edição comemorativa do I Simpósio Interamericano de Administração Escolar. Salvador: ANPAE, 1968, p.9-17.

TRAGTENBERG, Mauricio. A escola como organização complexa. Educ. Soc. , Campinas, v. 39, n. 142, pág. 183-202, janeiro de 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101- 73302018000100183&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em 25 de setembro de 2020.

 Trabalho docente: natureza, especificidades e perspectivas.

Carlos Antonio Fortuna de Carvalho

Licenciado em Pedagogia pela FE/UFG



Resumo

O presente artigo tem a intenção de abordar o termo “trabalho” a partir da perspectiva marxista diante do advento do capitalismo, destacando a relação de exploração estabelecida entre capitalista e trabalhador que se viu obrigado a aceitar a formalização e a fragmentação do trabalho. Abordará a retirada do domínio do trabalhador sobre o processo de produção e sua consequencia, o estranhamento entre o homem e o objeto do seu trabalho. Após esse primeiro momento, iremos refletir sobre a especificidade do trabalho docente e o que o diferencia das demais profissões, tendo em vista a sua natureza formativa. Também vamos destacar que o resultado do trabalho docente não é um produto, mas a autoconstrução do ser humano autônomo e capaz de questionar o modelo de sociedade em que vive. Como conseqüência disso, entra em rota de colisão com os interesses do sistema capitalista em sua face contemporânea, o neoliberalismo, que dentre outras, tem como meta reduzir a escola a um lugar de alienação ideológica e preparação de mão de obra para o mercado de trabalho. A partir desse contexto de disputa, dissertaremos sobre quais as perspectivas da docência para a superação dos desafios a ela colocados.

Palavras-chave: Docência. Desafios. Formação. Trabalho.


Introdução

O que é o trabalho? Como esse conceito de atividade humana surgiu? Estas são perguntas provocadoras que marcam o início da nossa análise sobre o trabalho, enquanto atividade humana, especificamente o trabalho docente, dentro do sistema capitalista.

Fontana (2008, p.165) diz que: “[...] o trabalho, numa forma social genérica, pode ser compreendido como a utilização da força de trabalho, na relação com a natureza, para a produção de valores de uso necessários à vida humana [...]”. Sobre o trabalho docente, Alves (2020) diz que é todo trabalho de ensinar de forma intencional e sistematizada. O objetivo deste texto é a reflexão sobre a relação entre o trabalho no sistema capitalista e trabalho docente, suas convergências e divergências, a natureza do trabalho docente e a formação dos professores.

O que diferencia a atividade humana da atividade dos demais animais? Exatamente a intencionalidade, ou seja, é uma atividade que busca não somente a sobrevivência, mas busca um objetivo e por isso se desenvolve a partir das experiências. A atividade dos outros animais é meramente a busca da subsistência e não tem evolução, a forma como exerce a sua atividade não muda com o tempo. Sobre isso, Vítor Paro afirma,

Quando consideramos uma espécie animal, por exemplo, no período de cem anos, constatamos não ter havido mudança. O animal é o mesmo no decorrer do tempo porque está preso a sua necessidade (ou “necessariedade”) natural. Com o homem a coisa é diferente, o homem é substancialmente diferente, substancialmente outro em relação ao homem de cem anos atrás. (PARO, 2000, p.29).

A partir da perspectiva do materialismo histórico-dialético marxista, no processo de trabalho existem três elementos: o objeto, instrumentos de trabalho e a atividade orientada (força de trabalho). O homem possuía o pleno domínio desses três elementos e estabelecia relações com a natureza e com os outros homens, alcançando como resultado o objeto desejado. Havia portando uma ligação, uma identificação entre o homem e o objeto resultante da sua intervenção.

O advento do capitalismo colocou fim ao trabalho humano em sua integralidade. Segundo Paro (2000), o domínio sobre os meios de produção foi expropriado, o capitalista passou a dominar os meios de produção e o trabalho foi fragmentado, retirando do homem o domínio sobre o processo de produção. A partir de então ocorreu uma submissão formal, restando a homem apenas a possibilidade da venda da sua força de trabalho.

Como ação essencial desse modo de produção, o capitalista, a partir do seu domínio dos meios de produção, passou a obter pelo produto um valor maior do que era pago ao trabalhador, essa diferença de valores é conceituada na perspectiva marxista como “mais-valia”. Vejamos como exemplo:

O algodão chegava à porta da fábrica na forma de um fardo e saía como peças de roupa que podiam ser vendidas a um preço mais alto. Dessa maneira, o trabalhador na fábrica adicionava valor às mercadorias. Mas não lhe pagavam o valor total que acrescentara. Em verdade pagavam-lhe um salário de subsistência, ou pouco mais; o dono da fábrica embolsava esse valor excedente, a mais-valia, como lucro. (STRATHERN, 2006, p.19).

        Quais elementos permitiram esse nível de exploração? Recorrendo mais uma vez ao pensamento marxista, identificamos a existência de uma série de elementos que sustentam o conceito de que a vida social é um reflexo da vida econômica. Em outras palavras, as relações sociais, ideológicas e intelectuais são determinadas pelas relações econômicas (STRATHERN, 2006). Esse arcabouço social mantenedor do status quo é bem representado pela metáfora do edifício,


A sua base ou infraestrutura seria o conjunto das relações de produção, ou seja, as relações de classes estabelecidas em determinada sociedade. Sobre esta estrutura econômica se ergueria a superestrutura, que corresponde às formas de consciência social em geral, como a política, a filosofia, a cultura, as ciências, as religiões, as artes, etc. A superestrutura compreende também os modos de pensar, as visões de mundo e demais componentes ideológicos de uma classe. A ideologia é chamada de superestrutura ideológica e o Estado é chamado de superestrutura legal ou política, incluindo aí a polícia, o exército, as leis, os tribunais e a burocracia (GUERRA, s.d).


Trabalho Docente

Trazendo essa reflexão para a educação e a realidade dos professores, recorremos às reflexões de Mariano Férnandez Enguita (1991) que dissertou sobre como a docência é desafiada em sua afirmação enquanto atividade profissional autônoma, tal como as atividades dos médicos, advogados e arquitetos, sendo condição essencial para não render-se à proletarização. Sobre isso,

É possível constatar que a proletarização é percebida como um processo inerente à desqualificação e precarização do trabalho docente, em decorrência das mudanças ocorridas na sociedade capitalista e, como conseqüência, no processo de trabalho do professor. (FONTANA, 2008, p.164)

Para Enguita (1991), é preciso destacar a existência de uma ambivalência entre os dois extremos. De um lado há um aumento no número de instituições privadas na educação, trazendo como característica principal nas suas relações trabalhistas a exploração do trabalhador e no setor público a persistente tendência ao corte de gastos. Por outro lado, a própria natureza do trabalho docente afirma a sua autonomia e resiste em adequar-se a padrões e mais ainda, a impossibilidade de sua substituição por máquinas. Assim, conclui que a profissão docente transita nos dois cenários.

A partir desse contexto, o trabalho docente assume importância fundamental, até mesmo para a sua afirmação enquanto profissão autônoma. Com isso, a escola tornar-se-á lugar de construção de conhecimento e de questionamento da realidade social, contrariando a tendência retrógrada de ser um lugar de formação de indivíduos dóceis ao status quo.

Para melhor entendermos a especificidade do trabalho docente, é necessário saber que o seu resultado é imaterial, ou seja, não é tangível. Paro (2000) nos diz que no trabalho pedagógico, o aluno é ao mesmo tempo “objeto e sujeito”, sendo capaz de capaz de resistir, agir e interagir durante o processo. Desta forma, diferencia-se do modo de produção capitalista no qual o objeto é passivo às transformações a ele impostas. O produto resultante do trabalho pedagógico não é a aula em si, mas a forma como o aluno entra e a forma como ele sai da escola, confirmando a tese de que o conhecimento é progressivo e transforma no educando a percepção sobre a realidade.

Neste sentido, o papel do professor é fundamental, pois a sua atitude enquanto educador é o que fará diferença na formação de seus alunos. O saber científico por si só não diz o que é o professor – há um saber invisível proporcionado pela experiência docente – que é utilizado em sala de aula, que transcende a mera repetição do mesmo (ALVES, 2018). A sensibilidade para sentir o momento certo para intervenções agregadoras de conhecimento só é desenvolvida através da experiência proporcionada pelo tempo.

Formação de Professores

Esse contexto nos direciona para uma reflexão sobre um aspecto fundamental no que diz respeito à construção de uma docência independente, ética e comprometida com a educação: a formação inicial e contínua de professores como forma de construção de sua identidade. Galúcio (2014) destaca esse fator como crucial para que o professor entenda as especificidades inerentes à prática pedagógica e contribua na construção da educação, principalmente na contemporaneidade em que conhecimento e informação são diferenciais determinantes para a ocupação dos espaços sociais, sendo a escola desafiada a buscar novas formas de ensinar.

Existe uma cobrança para que as instituições formativas aprimorem-se no sentido de tornar a prática cotidiana dos professores mais eficaz. Entretanto, há que se buscar o equilíbrio na aquisição de técnicas pedagógicas sem perder de vista conteúdos essenciais para o processo formativo. Ou seja, existe o risco de tornar o cotidiano pedagógico apenas instrumental,

A respeito dessa capacitação, pesquisas indicam a existência de um descompasso entre a proposta de criação dos cursos de capacitação e o seu real desenvolvimento. A capacitação transforma apenas as técnicas, mas não alcança os saberes docentes. (GALÚCIO, 2014, p.25)

Diante disso, é necessária a interação constante entre a academia e as escolas e também os currículos sejam repensados. E que os conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade se aproximem do cotidiano docente, principalmente nas escolas públicas que, além da diversidade do seu alunado e os diversos desafios colocados por essa realidade, enfrentam também a escassez de recursos materiais e humanos, causados pela incompetência do Estado e principalmente pelo projeto de desmonte da educação pública no Brasil. A docência precisa resistir à tendência de só aplicar técnicas de ensino, esse é o desejo do capitalismo, diante disso,

Nesse aspecto, um dos desafios é despertar um motivo central de mudança da prática docente, fomentando o processo educativo como parte significativa de sua profissão, sendo que ele precisa sim instrumentalizar-se, mas também contribuir para a formação social, transcendendo o mérito técnico e garantindo a apropriação do saber como forma de capacidade e autonomia social. (GALÚCIO, 2014, p.26)

Esse equilíbrio vai proporcionar a construção da identidade docente, contemplando as singularidades e subjetividades presentes na sua prática, permeada de desafios, ambigüidades e tensões nas relações dialéticas entre professor/aluno, professor/pais, professor/coletivo, professor/sociedade.

Considerações Finais

Nos últimos anos, os professores têm sido responsabilizados pelo fracasso escolar dos seus alunos – principalmente pela prática estatal influenciada por forças neoliberais e por grupos religiosos fundamentalistas – essa ideologia e esse discurso são largamente difundidos pelas mídias. Obviamente, para alcançar os seus objetivos, buscam exercer o controle do trabalho docente que, devido à sua natureza, não torna possível o total êxito de tal intento. Sabendo disso, as instituições formadoras são desafiadas a abrir caminhos para que saberes e valores essenciais sejam incorporados à prática pedagógica dos futuros professores.

Vivemos uma realidade intensamente desafiadora, marcada pela implantação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) caracterizada pela sua ideologia do mercado, pelo corte de gastos advindo da Emenda Constitucional nº95. A docência mais uma vez é desafiada a superar as dificuldades impostas. Além disso, a ascensão do discurso superficial, fundamentalista e extremista coloca os professores na condição de doutrinadores para uma suposta ideologia comunista e destruidores dos valores da família cristã ocidental. A educação enquanto área estratégica dentro do corpo social constitui-se em campo de luta. A partir desta percepção, é necessária a demarcação de limites para as ingerências estatais e de grupos fundamentalistas e o estabelecimento de metas para o desenvolvimento do trabalho docente, visando a construção de uma sociedade justa e plural.


Referências

ALVES, Wanderson F. A invisibilidade do trabalho real: o trabalho docente e as contribuições da ergonomia da atividade. Revista Brasileira de Educação, v. 23, Epub 3 dez.2018.

FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano F. A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Teoria e Educação, n.4, “Dossiê: interpretando o trabalho docente”, p. 41-61, Porto Alegre, 1991.

FONTANA, Klalter B. Tumolo, Paulo Sergio. Trabalho docente e capitalismo: um estudo crítico da produção acadêmica da década de 1990. Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 102, p. 159-180, jan./abr. 2008. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>.

GALÚCIO, Euricléia R. O que dizem os autores sobre formação docente no Estado do Pará. 2014. 111 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Instituto de Ciências da Educação. Universidade Federal do Pará, Belém.

GUERRA, Luiz A. Superestrutura e Infraestrutura. [s.d.]. Disponível em: < https://www.infoescola.com/sociologia/superestrutura-e-infraestrutura>. Acesso em: 09 jan.2021.

PARO, Vitor. A natureza do trabalho pedagógico. In: PARO, Vitor. Gestão democrática da escola pública. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2000.

STRATHERN, Paul. Marx em 90 minutos. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.



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